8.10.10

Outubros

Costumam ser farpas incômodas. Estive lendo. Queira o deus de vocês que eu vença mais esse, porque o meu me deixou alguns dias-de-padroeira atrás.

Valei-me.

Mãos Em Concha

Recolhido a um canto sem paredes do pátio, recurvava o corpo sobre as mãos unidas, criando um côncavo protetor sobre elas. As duas formavam uma espécie de concha quase cerrada, como escondesse algo cuidadosamente. Segredo.
Podia sentir ainda o escaldo do Sol, não tão estressante quanto se podia imaginar. Até mesmo aquela enganosa impressão de ouvir o som do mar ainda lhe era íntima. O tempo, esse então, nunca lhe parecera tanto uma estrada curta. Larga, mas curta.
A qualquer um, pareceria excêntrico. De fato o era, mas ninguém precisava saber. Nem mesmo fazia parte de seus planos revelar o que guardava com tanto esmero no esconderijo. E ponto final.

Segredo.

Mas, cá entre nós, eu conto. Ele tentava resguardar um visitante variável. Tentava resguardar um arisco raiozinho de Sol. Daquela mesma luz primeira da manhã.

Mas isso é segredo, hein.

5.10.10

Vermelho-morte

Quando veio o primeiro engano
Não deve ter sido coisa de homens
Nem de homem
Deve ter sido uma moça inconsolável
Que ao ver seu doce amor
Virar um amontoado de carnes mortas,
Teve a maravilhosa sensatez
De pintar a morte de preto
E não de vermelho-sangue
Como ela é e sempre será
Vermelho-morte
Morte vermelha que dói

30.8.10

Trocados

Acordou choroso. Fez a toilet sem muito capricho; algo naquela manhã em especial o compelia a não desperdiçar-se naquilo. Desceu ao térreo com uma feição estranha no rosto: momentos antes, estudava-se longamente no espelho do elevador. Tanta velhice, tanto torpor. Mal podia acreditar que há tão poucos dias ainda estivera acompanhado dela. Mal podia acreditar que há poucas semanas enfrentara tantos moralistas por aquele amor. Amor. Imbróglio. Pais e pais e pais e conversas e discussões, tudo para que, ao fim de uma tarde qualquer de domingo, estivessem acabados. Bom, ao menos ele. Por vezes ainda tinha a impressão de ouvi-la rir não tão longe dali, entretida com um forasteiro de ar jovial e fala mansa. Ou quem sabe aquele fantástico professor de literatura sobre quem ela tanto falara e até balbuciara-lhe o nome durante o sono. Ela era tão nova e ele era tão velho. Séculos os separavam e ele se demorara em construir uma ponte que os permitisse repousar juntos.
Deslizou relapso pela portaria e ganhou os primeiros metros da calçada sem muito esforço. Tateou os bolsos em busca de trocados. Os famosos trocados, ela sempre ria de seus trocados. Ela sempre ria. Assim como lhe zombava as meias velhas e encardidas, que ele relutava em trocar. Achou-se então menos valioso que suas meias imundas; ela não teve a mesma dificuldade em dizer-lhe não que ele sempre tivera para com as meias. Sentiu as moedas no bolso da camisa. Receou serem botões. Eram moedas. Contou-as enquanto desviava-se do fluxo contrário de transeuntes. Ineficaz, como deveria ter-se imaginado: chocou-se ombro a ombro como uma senhora, senhora esta que vacilou com o impacto. Espalhou-se desserviço pela calçada. Desserviço e moedas, as quais o rapaz apressou-se em recuperar, enquanto balbuciava pedidos de perdão à dona que pensava ter ferido. A mulher, por sua vez, ignorou-os e há alguns segundos retomara a rota original, sem encontrões ou pedidos de perdão.
Perdão. Ela o perdoara tantas vezes... tantas, tantas vezes. Decerto, tomar conhecimento daquelas atitudes fora crucial na postura irresponsável que a filha invariavelmente havia adotado recentemente, até mesmo quebrara o coração de um tal rapaz. Ainda assim, tinha sido um bom pai, o diabo, e até mesmo um bom companheiro; no entanto, ela há muito compreendera que ele nunca poderia ter-se sentido homem de uma só mulher. Longos fios de cabelo e perfumes estranhos, sempre nas roupas de trabalho. De alguma forma, não o culpara e o perdão tinha sido sua morada por diversas vezes, no desespero das tardes de folga em casa. Chorara longas horas de perdão sozinha. Absorta, só pôde perceber os "espólios" do acidente quando pousou o jornal que trazia debaixo do braço sobre o balcão do café. Uma pequena moeda (que outrora pertencera ao rapaz do encontrão) alojara-se numa das dobras do papel e agora sorria sombriamente para sua nova dona. E quem seria, a essas alturas, a nova dona dele? Às vezes se perguntava se ele não era fiel a somente uma das tais "outras". Uma que tivesse longos cabelos loiros, como aquelas que o impressionavam tanto nos filmes aos quais assistiram juntos e sobre as quais ele não tinha sequer o pudor de omitir os comentários. Às vezes se pegava torcendo para que ela fosse bem bonita. Como ela sabia que um dia fora. Terminou o cappuccino. Mirou longamente a pequena peça de metal ao lado da xícara. Juntou-a a algumas notas e empurrou-as sem cerimônias à enfastiada moça do caixa. Tudo, trocado, sem troco. Um arrepio de redenção percorreu-lhe o corpo ainda curvilíneo quando sentiu os olhos do homem atrás de si na fila percorrerem-lhe as carnes, sedentos, enquanto ela girou e retirou-se do recinto.
Recinto. Ressentia. O odor de sangue impregnou-lhe novamente as narinas, mentalmente, e ele pôde vislumbrar novamente aquele quarto empoeirado onde era o rei, o mestre, o guia. Mal pôde notar quando a operadora do caixa deslizou a moeda que acabara de receber da mulher na direção do homem, completando o troco. Funcionava paralelamente à sua mente quando recolheu a quantia e girou nos calcanhares para cruzar o corredor em direção à pequena loja de livros. Aqueles outros livros haviam lhe custado tanta paciência e zelo que sequer podia considerar o valor material diante do prazer que sentia ao folheá-los, salpicados de sangue. O toque áspero das páginas antigas, o suave rumor das páginas tornando-se ultrapassadas... tudo isso intercalado pelos gritos guturais de suas meninas. Moças lindas, elas eram. Tão lindas, tão jovens. Ele as explorava como a almanaques, cheios de referências e detalhes, curiosidades... Cada grito ecoava em sua mente como se implorassem por mais. E então ele era caridoso e lhes dava mais: deslizava-lhes amorosamente as lâminas pelo corpo, abrindo vias maravilhosas por entre a pele e as carnes pulsantes delas. Respirou fundo ao reviver cada segundo de sua intimidade; sentiu-se um poeta inigualável. Mal podia acreditar que estava tão próximo de escrever mais um soneto em seu legado. Consultou o relógio de bolso assim que adentrou a pequena banca de livros usados com um bom-dia prestativo do velho proprietário do ponto. Oito e trinta e seis. Já podia sentir a fragrância feminina misturada ao cheiro de medo e sangue; apertou a mão num reflexo prazeroso e sentiu o toque metálico do troco do café na mão. Uma voz suave o sobressaltou, vinda de suas costas e ele se virou de chofre, deixando à gravidade a função de arrastar as moedas até o chão e espalhá-las, quicando, enquanto ele mesmo se ocupava de saudar, galantemente, a fonte de seu susto. A moça sorriu e se curvou para recolher o dinheiro do chão, salvando na própria mão os trocados.
Trocados. Os famosos trocados, ela riu por dentro. Sempre ria dos trocados. Não se demorou em acompanhar o homem que a esperara tão educadamente. As moedas no chão deviam ser um bom sinal, como antes foram.
Lá de cima, Deus se divertia.

29.8.10

Dá Licença

— Dá licença, larga isso, um momento. Posso perguntar seu nome?

É tanta pose, é tanta fumaça que eu não consigo ver, não consigo conhecer. Réstias de sol que escapam por entre as nuvens mais vacilantes. Um cativeiro imaturo pr'essa pressa de criar.

— Dá licença, caro amigo, posso te invejar?

Meu tempo é pouco. Meu tempo foi muito. Quisera eu, há anos, estar tantos passos à frente. Em verdade, não. Não teria a mesma coragem.

— Dá licença, irmão, posso lhe falar?

Cante esse ímpeto para fora de você e viva mais suavemente. A vida é como um beijo. Seja dela o amante carinhoso.

20.8.10

Plataforma Vinte e Cinco

Banco vazio, garagem vazia. A verdade é que a manhã não era novidade para ninguém. Nem para o dono dos olhos. No entanto, sim, o banco era novamente um banco. O céu ainda era céu, o tempo era tempo mas as mãos já não eram âncoras e os risos não faziam sentido.
A baía não era longe. Talvez pudesse nadar até sua ilha. Talvez não pudesse e estivesse condenado a ser um espectador. Não era ruim, os pés ainda eram pés e o peito ainda pulsava. Ainda assim, a pele já não era pano e a calma era desânimo. Quis cantar. Não pôde.
A garagem havia sido ocupada e, a algumas horas dali, ainda havia banhos a serem tomados.

Cadeira de Balanço

Era fim de tarde e, entre uma brisa e outra, uma das árvores se voltou para a outra com um olhar carinhoso. Orgulhavam-se, as duas, de suas raízes, estas tão profundas raízes. Anos e mais anos de sóis, chuvas e ventanias gravados na terra.
Os galhos oscilaram.
Os troncos gastos, marcados por toda sorte de intempérie, quase se inflavam na respiração ruidosa de duas criaturas senis. Era um choro silencioso que se alternava com o canto submisso das décadas cansadas que haviam se arrastado.
Novamente, o vento carregou os ramos.
Comemoravam. Era a celebração da velhice. Juntos, até que o fim raiasse.

14.8.10

Fazer Acreditar

Vender-se-iam. Verbalmente, fantástico. Nem tão impressionante na prática. A aridez das tardes me fazia perguntar aos meus cabelos empoeirados: quanto vale um gole de ar? A secura da relva amarelada se refletia nos meus olhos, forçados a abandonar o lilás das noitinhas arrastadas para espelhar o crepúsculo magenta quase tão obsceno quanto as histórias que me enchiam os ouvidos.
Vender-se-iam. Esse é o lema daqueles que mantêm o lugar, quase dotados da mesma bazófia de um bolchevique inconformado, insandecido pelo grosso do formol. A cidade, assim como a terra, morrera a passos largos havia anos e muitos ainda se amontoavam por um fragmento do grande cadáver. Obsceno. A resignação das noites secas e solitárias acortinava-se com a autopiedade do trabalho e nutria-se da arrogância infundada de um povo iludido.
Os crocodilos não se davam sequer ao trabalho de notar que já não havia mais espaço para bandeira alguma naquela montanha. O cume estava repleto. Decerto, não haveria também lar para desbandeirados e sua estranha necessidade de beber água. Era o faroeste de gala. Nos bolsos internos dos ternos dantescos, repousavam as pistolas, engatilhadas. Era o faroeste de gala, era terra de todos.
E de tanto ser terra de todos, terminou por ser terra de ninguém cão com muito dono morre de fome terra de ninguém. Uma terra tão imersa em leis que acabou por se tornar um antro de negligência. E tão logo alcançava-se a compreensão, as narinas estavam cheias de fumaça, poeira e medo.
Ao fim do dia, com a fuga do calor, sentia-se todo aquele laterito compactar-se no interior da mente, enrijecendo as ideias e paixões, estupidificando-as. Se pudesse romper o peito com um urro, veria uma alma alaranjada e opaca. Haveria de dar nela um banho salgado. Bem longe dali.
Era, sim, magnífica. A prova cabal de que a irresponsabilidade pode tomar contornos em vidro, concreto, aço e asfalto. Uma peça ingênua que, no presente, remetia a pouco da empáfia da igualdade que se presumia na pompa dos discursos. Fora tempo perdido. Fora um grito de socorro. Fora o sorriso de um homem bom.
E os mequetrefes, balangandãs e faraonices. O chão duro e impassível fora todo mascarado com linhas e linhas e polígonos e ângulos e arcos urbanoides modernos. Uma coisa bonita de se ver e triste de se sentir, inatas, uma vez que o lobo espreitava com a bocarra semicerrada em cada esquina. Esquina?
Fora tempo perdido. Fora porta fechada. Bati a sola encardida no rodapé, discretamente. Não pude dizer nada diferente: embriagada pela esperança tola da igualdade, acabou por cometer o pior dos crimes: o de fazer acreditar. Fin.

3.7.10

Débito

A verdade mesmo é que ando pobre. Peguei-me endividado e imerso em juros e mais juros. Capitalismo literário. Os dias, as noites e as páginas exigem pagamentos dantescos. Tempos difíceis, crise.
A verdade mesmo é que não tenho um puto no bolso. E esse negócio de poesia custa caro, muito caro. Coisa de gente rica, com suas camisas listradas, amores-perfeitos, perfeitos amores e gatos. Gatos. E eu querendo arranjar cachorros. Devedor irrecuperável. Inadimplente incorruptível. Safado.
Beleza. Dinheiro, dinheiro: vicissitude da natureza humana. Concordo, em termos. Dá ainda para fingir. Vestir o capuz e brincar de artista. Já fiz isso, confesso. Mas acho que o meu furou. Um desastre ambiental colossal, um enorme vazamento de vanidades. E vaidades, eventualmente. Piscadela.
Não que eu me queixe, nossa, meu teto já foi bem ornado em outros tempos. Possuísse ele goteiras ou abóbadas fantásticas, sempre foi dono de uma engenharia original. Meia-boca, mas original. Não que tenha feito a diferença.
A diferença é que tem feito.
Vou ver se junto minha caixinha de moedas. Os trocos que a vida me deu. Sempre recuse os chicletes. Beijo, nêga, só pra constar.

2.6.10

Nalgum Momento

Ali, preso entre aquelas paredes de êxtase e desespero, ele enfim compreendeu que havia adoecido. Um vento estranho soprava e seu peito lembrava uma garrafa vazia à deriva. Era isso então estar envenenado? Não, quem sabe não. Quem sabe era aquele desejo de existir para alguém que não sua própria consciência.
Havia em si ainda um leve rancor de ter dado às pequenas tantas coisas tanta atenção e, no fim, ter tornado-se uma presa.

Dias e meses depois, compreendia porque a vida te dá o osso e te toma os dentes.

30.1.10

Cão

Enganou-se. Isso aí que você chama de homem é na verdade um cão. Vive de busca. Busca problemas, soluções, felicidades e decepções. Em vão, mas busca. Vive também de desentendimentos. Quer fazer valer sua existência a todo custo. Faz barulho, rosna, avança, implica, discorda. Late, late, late, late. E às vezes vai à procura de algo que valha o empenho, o pobre-diabo.
Antes de tudo, procura uma companhia.
É o que procura um pedaço de gente quando planeja um dia ser homem. Homem-cão. E revira o mundo ao avesso atrás do par para seus chinelos. Um pedaço melhor de gente, melhor que ele mesmo. Que lhe dê um senso de direção e um sentido para a vida. Um rumo. E o faça pôr os pés na estrada tortuosa sem temer terminar só. E só terminar.
Antes de tudo, busca uma âncora.
Alguém que lhe devolva a paz de estar com os pés no chão. Que esteja sempre ao lado para lembrar que existe um rumo e que sem ele nada é real. E acima de tudo, que lhe segure. Que lhe desvende os olhos quando a fúria o cega, que o envolva num abraço longo quando o corpo entrar em chamas. Alguém que segure a onda. E o cão precisa de uma âncora para seguir sua natureza: por mais distante que vá, por mais improvável que seja, ele sempre volta. E repousa no seu lugar de direito.
Antes de tudo, fareja um cheiro.
Um cheiro doce que o arraste para longe do mal e faça endoidecerem os sentidos. Um aroma forte para estremecer as pernas e fazer perder a certeza de que existe um chão para se apoiar. Que tome de assalto a consciência e faça das memórias e do agora uma só coisa. O cheiro que em cada tragada traga tragédias sem conserto de volta, enchendo os pulmões com a dor de lembrar da distância. E faça doer mais ainda quando abrem-se os olhos e vêem que a distância existe mesmo fora do pesadelo. Que o faça sofrer, para não deixar evanescer a ideia de voltar sempre. Que o faça alegrar-se por ter a certeza de ser dono da melhor das sortes.
Antes de tudo, cai por uma mulher.
A mulher procura o homem. Aquela uma que lhe arranque os pedaços com um olhar feroz, que lhe desmonte o corpo, que lhe remonte a alma. Que lhe tome a voz, que lhe governe os músculos, que lhe cegue os olhos com fervor. Que lhe mergulhe num estado de estupor enquanto ri entretida. Que lhe seja a fêmea e que lhe seja a porcelana. Que lhe cobre cuidado e afeto; que lhe cobre o carinho desajeitado de homem. Uma mulher que lhe dê uso ao peito, no descanso. Que lhe lave o pescoço com lágrimas, mesmo que lhe queime a pele e lhe mareje os olhos. A mulher que lhe empreste o rosto e lhe dê uso às mãos pedindo um afago para livrar a face bonita de todo o mal do mundo. Que sinta medo e encontre o escudo nos braços dele, senão numa palavra forte. A mulher que lhe seja a fêmea e a porcelana.
E guiado por ela, enfim o homem encontra o lugar.
O lugar para repousar a cabeça cansada da rotina viciada de um casal apartado. Para mergulhar o rosto em segurança e se perder na noite. Fugir do mundo imerso no rio negro que verte da cabeça firme de mulher e por vezes se entrelaça junto à face suada. O lugar que inquieta a tez e faz o espírito descansar. Ali dentro, ele reina. Pleno. E ali dentro, escolhe ficar. Até que a porra das circunstâncias o carreguem para longe de novo. Inerte e atado, ele vai, emputecido. Mas é assim, sem mais, sem menos, à base da rima pobre de um pobre cão:
Não me aprofundo;
Por nem mais um segundo;
E nem por isso afundo;
Mesmo sendo um homem imundo;
Mesmo sendo um vagabundo;
É nos teus cabelos que repouso:
O melhor lugar do mundo.
(E o cão já não procura mais.)