21.5.09

Fugacidades (II)

Falava demais, gesticulava demais. Deixava-se absorver pela própria paixão. Engolido pelo calor de seu brilhantismo, parecia não notar que ninguém — senão ele mesmo — parecia fazer ideia do dialeto que discursava.
A expressividade de que se abstinham os estreitos olhos indígenas se fazia externa pelos giros e marabalismos manuais. Alguns diriam que estes lhe garantiam um jeito afetado e indefinido. Eu digo que lhe garantem um jenesequoi de gente culta e geniosa: os bons e velhos humânicos.
Apoiava-se no quadro, encaretava-se para as paredes, condenava nossas mentes à malhação cultural. Perdia-se em exemplos excêntricos e muito pouco aproveitados pelos companheiros-de-meias-altas. É, esses mesmo, os de dentes lixados.
Juridiquês, economês, surfistês, citou. E foi. Foi falando o português. E eu, feito de gringo, fui tentando entender.

18.5.09

Fugacidades (I)

Já iam-se quase sete quando ela sentou-se. Hesitante, puxou a carteira de lado e acomodou-se elegantemente. Nem de longe era a loira mais bonita que já vira. No entanto, emanava toda aquela aura ostensiva ariana que impressiona e dá impressão de grandeza.
Indiferente ao resto do cosmos, inclusive ao meu olhar espião, tomou a bolsa e retirou um livro de capa amarela. Abriu-o numa página premeditada e sacou o marcador-de-páginas com todo o desprezo de que dispunha. Atirou-o de lado. Pobre-diabo.
E foi com surpresa que a observei prender-se à leitura assim que seus olhos claros encontraram a primeira palavra. Em silêncio absoluto, pareceu abdicar de respirar por alguns momentos tamanha era sua concentração. Nem a euforia esdrúxula dos outros ocupantes do ambiente parecia desviá-la de seu foco. Hermética.
Preguiçosa, cerrou o punho e, sobre ele, apoiou a bochecha direita. O aspecto infantil a não privou da aparência contemplativa; no fim, não seria ela exatamente como eu? Eu não poderia ter certeza do que se passava debaixo dos fios dourados. Talvez as páginas somente a guiassem para suas preocupações e amenidades do tipo, as quais ela não encontraria em livro algum.
A verdade é que nada disso me dizia respeito. E nem ao bacharel, que caminhou até o tablado e, ignorando os protestos silenciosos da plateia, fez menção de dar início às formalidades. A loira, conformadamente resignada, fechou o livro. Eu fechei os olhos e abri o caderno.

13.5.09

Filme Mudo

Às vezes, descendo escadas, me sinto assim, em preto e branco. Como um daqueles filmes mudos, inexpressivos. Tudo o que me restou foi o músico apressado que preenche com sons o vão deixado pelas palavras. Palavras essas que se abrigaram sabe-se-lá-onde, deixando ecos para trás feito pegadas.
Não que eu ainda faça questão de me doer nessas agulhas que espetamos juntos; aprendi que o Além-mar, ainda que oniricamente, me guarda doces e salgados inesperados. Aprendi a ser criança direito, sem ter de desfiar alças inocentes, assim, sob olhares piedosos que recusei.
Meu espelho, no mesmo quarto chuvoso, hoje reflete um maior mais completo, por mais irônico que possa soar. Um olhar mais ensolarado, sorrisos mais ensaiados, distrações melhor planejadas. Um verdadeiro vice-campeão orgulhoso de sua prataria bem polida.
Fiz de mim um filme mudo, de fato. Um passo errado numa vida inconstante. Com muitas pedras a declarar e poucos a suportarem-nas, agora mexo em cordas. Talvez até ainda invente uma moda contextualizada qualquer dia desses. Só pra rir um pouco. E assumir que sou mesmo vintage.