30.1.10

Cão

Enganou-se. Isso aí que você chama de homem é na verdade um cão. Vive de busca. Busca problemas, soluções, felicidades e decepções. Em vão, mas busca. Vive também de desentendimentos. Quer fazer valer sua existência a todo custo. Faz barulho, rosna, avança, implica, discorda. Late, late, late, late. E às vezes vai à procura de algo que valha o empenho, o pobre-diabo.
Antes de tudo, procura uma companhia.
É o que procura um pedaço de gente quando planeja um dia ser homem. Homem-cão. E revira o mundo ao avesso atrás do par para seus chinelos. Um pedaço melhor de gente, melhor que ele mesmo. Que lhe dê um senso de direção e um sentido para a vida. Um rumo. E o faça pôr os pés na estrada tortuosa sem temer terminar só. E só terminar.
Antes de tudo, busca uma âncora.
Alguém que lhe devolva a paz de estar com os pés no chão. Que esteja sempre ao lado para lembrar que existe um rumo e que sem ele nada é real. E acima de tudo, que lhe segure. Que lhe desvende os olhos quando a fúria o cega, que o envolva num abraço longo quando o corpo entrar em chamas. Alguém que segure a onda. E o cão precisa de uma âncora para seguir sua natureza: por mais distante que vá, por mais improvável que seja, ele sempre volta. E repousa no seu lugar de direito.
Antes de tudo, fareja um cheiro.
Um cheiro doce que o arraste para longe do mal e faça endoidecerem os sentidos. Um aroma forte para estremecer as pernas e fazer perder a certeza de que existe um chão para se apoiar. Que tome de assalto a consciência e faça das memórias e do agora uma só coisa. O cheiro que em cada tragada traga tragédias sem conserto de volta, enchendo os pulmões com a dor de lembrar da distância. E faça doer mais ainda quando abrem-se os olhos e vêem que a distância existe mesmo fora do pesadelo. Que o faça sofrer, para não deixar evanescer a ideia de voltar sempre. Que o faça alegrar-se por ter a certeza de ser dono da melhor das sortes.
Antes de tudo, cai por uma mulher.
A mulher procura o homem. Aquela uma que lhe arranque os pedaços com um olhar feroz, que lhe desmonte o corpo, que lhe remonte a alma. Que lhe tome a voz, que lhe governe os músculos, que lhe cegue os olhos com fervor. Que lhe mergulhe num estado de estupor enquanto ri entretida. Que lhe seja a fêmea e que lhe seja a porcelana. Que lhe cobre cuidado e afeto; que lhe cobre o carinho desajeitado de homem. Uma mulher que lhe dê uso ao peito, no descanso. Que lhe lave o pescoço com lágrimas, mesmo que lhe queime a pele e lhe mareje os olhos. A mulher que lhe empreste o rosto e lhe dê uso às mãos pedindo um afago para livrar a face bonita de todo o mal do mundo. Que sinta medo e encontre o escudo nos braços dele, senão numa palavra forte. A mulher que lhe seja a fêmea e a porcelana.
E guiado por ela, enfim o homem encontra o lugar.
O lugar para repousar a cabeça cansada da rotina viciada de um casal apartado. Para mergulhar o rosto em segurança e se perder na noite. Fugir do mundo imerso no rio negro que verte da cabeça firme de mulher e por vezes se entrelaça junto à face suada. O lugar que inquieta a tez e faz o espírito descansar. Ali dentro, ele reina. Pleno. E ali dentro, escolhe ficar. Até que a porra das circunstâncias o carreguem para longe de novo. Inerte e atado, ele vai, emputecido. Mas é assim, sem mais, sem menos, à base da rima pobre de um pobre cão:
Não me aprofundo;
Por nem mais um segundo;
E nem por isso afundo;
Mesmo sendo um homem imundo;
Mesmo sendo um vagabundo;
É nos teus cabelos que repouso:
O melhor lugar do mundo.
(E o cão já não procura mais.)