30.8.10

Trocados

Acordou choroso. Fez a toilet sem muito capricho; algo naquela manhã em especial o compelia a não desperdiçar-se naquilo. Desceu ao térreo com uma feição estranha no rosto: momentos antes, estudava-se longamente no espelho do elevador. Tanta velhice, tanto torpor. Mal podia acreditar que há tão poucos dias ainda estivera acompanhado dela. Mal podia acreditar que há poucas semanas enfrentara tantos moralistas por aquele amor. Amor. Imbróglio. Pais e pais e pais e conversas e discussões, tudo para que, ao fim de uma tarde qualquer de domingo, estivessem acabados. Bom, ao menos ele. Por vezes ainda tinha a impressão de ouvi-la rir não tão longe dali, entretida com um forasteiro de ar jovial e fala mansa. Ou quem sabe aquele fantástico professor de literatura sobre quem ela tanto falara e até balbuciara-lhe o nome durante o sono. Ela era tão nova e ele era tão velho. Séculos os separavam e ele se demorara em construir uma ponte que os permitisse repousar juntos.
Deslizou relapso pela portaria e ganhou os primeiros metros da calçada sem muito esforço. Tateou os bolsos em busca de trocados. Os famosos trocados, ela sempre ria de seus trocados. Ela sempre ria. Assim como lhe zombava as meias velhas e encardidas, que ele relutava em trocar. Achou-se então menos valioso que suas meias imundas; ela não teve a mesma dificuldade em dizer-lhe não que ele sempre tivera para com as meias. Sentiu as moedas no bolso da camisa. Receou serem botões. Eram moedas. Contou-as enquanto desviava-se do fluxo contrário de transeuntes. Ineficaz, como deveria ter-se imaginado: chocou-se ombro a ombro como uma senhora, senhora esta que vacilou com o impacto. Espalhou-se desserviço pela calçada. Desserviço e moedas, as quais o rapaz apressou-se em recuperar, enquanto balbuciava pedidos de perdão à dona que pensava ter ferido. A mulher, por sua vez, ignorou-os e há alguns segundos retomara a rota original, sem encontrões ou pedidos de perdão.
Perdão. Ela o perdoara tantas vezes... tantas, tantas vezes. Decerto, tomar conhecimento daquelas atitudes fora crucial na postura irresponsável que a filha invariavelmente havia adotado recentemente, até mesmo quebrara o coração de um tal rapaz. Ainda assim, tinha sido um bom pai, o diabo, e até mesmo um bom companheiro; no entanto, ela há muito compreendera que ele nunca poderia ter-se sentido homem de uma só mulher. Longos fios de cabelo e perfumes estranhos, sempre nas roupas de trabalho. De alguma forma, não o culpara e o perdão tinha sido sua morada por diversas vezes, no desespero das tardes de folga em casa. Chorara longas horas de perdão sozinha. Absorta, só pôde perceber os "espólios" do acidente quando pousou o jornal que trazia debaixo do braço sobre o balcão do café. Uma pequena moeda (que outrora pertencera ao rapaz do encontrão) alojara-se numa das dobras do papel e agora sorria sombriamente para sua nova dona. E quem seria, a essas alturas, a nova dona dele? Às vezes se perguntava se ele não era fiel a somente uma das tais "outras". Uma que tivesse longos cabelos loiros, como aquelas que o impressionavam tanto nos filmes aos quais assistiram juntos e sobre as quais ele não tinha sequer o pudor de omitir os comentários. Às vezes se pegava torcendo para que ela fosse bem bonita. Como ela sabia que um dia fora. Terminou o cappuccino. Mirou longamente a pequena peça de metal ao lado da xícara. Juntou-a a algumas notas e empurrou-as sem cerimônias à enfastiada moça do caixa. Tudo, trocado, sem troco. Um arrepio de redenção percorreu-lhe o corpo ainda curvilíneo quando sentiu os olhos do homem atrás de si na fila percorrerem-lhe as carnes, sedentos, enquanto ela girou e retirou-se do recinto.
Recinto. Ressentia. O odor de sangue impregnou-lhe novamente as narinas, mentalmente, e ele pôde vislumbrar novamente aquele quarto empoeirado onde era o rei, o mestre, o guia. Mal pôde notar quando a operadora do caixa deslizou a moeda que acabara de receber da mulher na direção do homem, completando o troco. Funcionava paralelamente à sua mente quando recolheu a quantia e girou nos calcanhares para cruzar o corredor em direção à pequena loja de livros. Aqueles outros livros haviam lhe custado tanta paciência e zelo que sequer podia considerar o valor material diante do prazer que sentia ao folheá-los, salpicados de sangue. O toque áspero das páginas antigas, o suave rumor das páginas tornando-se ultrapassadas... tudo isso intercalado pelos gritos guturais de suas meninas. Moças lindas, elas eram. Tão lindas, tão jovens. Ele as explorava como a almanaques, cheios de referências e detalhes, curiosidades... Cada grito ecoava em sua mente como se implorassem por mais. E então ele era caridoso e lhes dava mais: deslizava-lhes amorosamente as lâminas pelo corpo, abrindo vias maravilhosas por entre a pele e as carnes pulsantes delas. Respirou fundo ao reviver cada segundo de sua intimidade; sentiu-se um poeta inigualável. Mal podia acreditar que estava tão próximo de escrever mais um soneto em seu legado. Consultou o relógio de bolso assim que adentrou a pequena banca de livros usados com um bom-dia prestativo do velho proprietário do ponto. Oito e trinta e seis. Já podia sentir a fragrância feminina misturada ao cheiro de medo e sangue; apertou a mão num reflexo prazeroso e sentiu o toque metálico do troco do café na mão. Uma voz suave o sobressaltou, vinda de suas costas e ele se virou de chofre, deixando à gravidade a função de arrastar as moedas até o chão e espalhá-las, quicando, enquanto ele mesmo se ocupava de saudar, galantemente, a fonte de seu susto. A moça sorriu e se curvou para recolher o dinheiro do chão, salvando na própria mão os trocados.
Trocados. Os famosos trocados, ela riu por dentro. Sempre ria dos trocados. Não se demorou em acompanhar o homem que a esperara tão educadamente. As moedas no chão deviam ser um bom sinal, como antes foram.
Lá de cima, Deus se divertia.

Um comentário:

Filipe Coswosk disse...

entra no MSN, caralho